Por Leozito Coelho

8 de setembro de 2009

Barrinha de cereal

A vida é muito irônica. Isso aqui é uma puta gozação. Quem inventou é gênio, um fora de série. Pensa bem. Certo dia acordo obcecado em comprar um televisor pra mãe. Ela fez tudo por mim. Na verdade ela fez tudo pelos outros para depois fazer tudo por mim. A mãe encerou muito assoalho de rico, passou muita cueca, lustrou muita prataria, aspirou muito carpete de doninha, ela fez isso tudo pensando em mim, no meu futuro, em um futuro menos óbvio e mais digno. Mas eu nunca dei o devido valor a essa retidão materna. Só fui me ligar naquele dia, quando levantei cheio de remorso.

Eu fui ao supermercado e parcelei o eletrodoméstico. A tevê não era dessas mais modernas, ela tinha jeitão de aparelho mesmo, rombuda, bem ao gosto da mãe. Tanto que a mãe ficou emocionada ao ver a belezura irradiando luz barraco afora. Não precisava, ela disse soluçando, mas precisava sim, na verdade eu precisava mais do que ela. Ah, saudade da mãe.

Uma ironia danada. Eu vou lá, financio a tevê, preencho os cupons do sorteio, aí me aparece a morena, essa deusa com voz de atriz. Quer estar concorrendo a um ano de academia grátis, senhor?, então basta estar preenchendo este formulário, comprando esta caixa de barras de cereal e, neste espaço, basta estar respondendo por que o senhor deseja se tornar um atleta Fitness For Fun 2009. Eu caí na prosa da moça. Fico sempre meio besta diante de mulher boazuda. As barrinhas eram detestáveis, sabor de banana. Banana é fruto de pobre. Pobre quando amadurece não aguenta mais ver banana. Deve ser psicológico, eu sei lá.

Repara, nem comento. Vou ao supermercado, pago a tevê pra me livrar do remorso, deposito o cupom, o cupom sai, o carro é meu. E mais: vou indo embora, o caixote nas costas, paro no estande da num-sei-quê-fitness, me dá essa caixa de barrinha, deixa eu ver este formulário, deixa eu pensar em algo, uma frase inteligente, e aí pimba, me ligam, o senhor é fulano?, pois o senhor acaba de ganhar um ano grátis em nossa academia piriri porôrô...

Chego de carro, no meu carro. A academia está cheia de classe média. As mulheres estão enfiadas em roupas justas, quando elas se curvam eu consigo imaginá-las com bastante precisão. Um mundo de morangos e amoras, sem dúvida, um mundo onde banana não entra, quer dizer, entrar até entra, mas não a minha. Os rapazes são fortes, falam alto, usam camisetas e fazem careta quando puxam o ferro. Um deles me observa, analisa os meus trajes. Eu estou de calção azul, blusa de concessionária, tênis raso sem meias e boné da num-sei-quê-fitness. Ele segue me encarando, eu já cogitando uma boiolagem, eu sei lá, hoje em dia misturou tudo, e de repente o pulha bate a mãos, faz cara de descoberta, aponta o dedo grosso e berra: ora se não é o filho da diarista!

Diarista é moderno. Empregada fica feio na boca de classe média. Ainda mais em público.

Pensa: a mãe se rala toda pra me dar um futuro, trabalhando com gente da laia desse escroto da academia, cozinhando feijão pra ele, limpando a privada dele, varrendo o chão que ele pisa. Mas eu, imbecil, não me toco. Sigo com a vidinha de vagabundo. Um bico aqui e outro ali. Até que um belo dia acordo sentido, vou lá, compro a tevê, preencho o cupom, penso na frase, engulo a barrinha, ganho o carro, a anuidade, e quando me dou ao luxo de usufruir da graça recebida, pronto, sou logo arremessado ao posto de costume, o filho da empregada, o pobre, o roto, o mal vestido, sempre ouvindo risinhos ao fundo.

O que faz aqui, meu jovem? Vontade de descer-lhe o punho, mas o cara é um cavalo, dá dois de mim com sobra. Eu vim ganhar físico, respondo todo valente, mas ele ri, você quer dizer malhar, certo?, é isso mesmo, eu vim malhar, essa é a palavra classe média correta, imbecil, imbecil, imbecil...

Estou ficando depressivo, relembrando tudo. Vou ser breve.

Bolo um plano: ficar forte pra arrebentar o cabra todo. Mas o sujeito só aumenta, a pele cada vez mais esticada, os músculos querendo sair pra fora. O que fazer? Não sei, não sei. Mas um dia, tem sempre um dia na minha vida, ele vem com essa: pega o de trinta pra mim, fióte? O cara pede sem por favor, mas eu vou assim mesmo, obrigado. Mal carrego o altere de trinta quilos, tenho de utilizar as duas mãos. O paçoca está ali, deitadão, puxando a barra. As veias saltando do pescoço. Foi instinto, gente. Eu juro. Soltei o altere na goela dele. Lembro do som, o som de alguém pisando em um biscoito de água e sal. Quase sou linchado. A turma do deixa disso me deixa vivo e me entrega à polícia. A mãe faz visita dias depois. Diz chorando que viu a cena pela tevê, a tevê rombuda do supermercado, a tevê pra aplacar remorso.

A vida é muito irônica. Quando a gente acha que está ganhando, nem faz ideia de que já começou a perder, a perder pra valer.

A mãe vem hoje. Pedi a ela que não trouxesse bolo de banana. Eu tomei ódio de banana. Na verdade tomei ódio de tudo. Tomei ódio até desse remorso que não passa. Porra.


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6 comentários:

Keila Costa disse...

Adorei! Sempre belo texto, com ironia na medida, e convite a tantos pensamentos...
Beijinho e saudades!

Kaukal disse...

"Pra variar" um conto espetacular

Unknown disse...

Muito bom!rs
Adoro banana!rs
bjim

Leticia disse...

Muito bom, Leo, mas me deu uma certa angústia...era essa a intenção?
bjs, Leticia

BRUNA disse...

Muito bacana, Leo! Nos faz pensar em mil coisas... é forte...

Robinson Machado disse...

Porra, que texto bom.

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