Chamava-se Margarete. O apelido, Margô.
Seu Olavo descia às nove, o bicho no pescoço. O elevador parava no décimo, eu abria a porta e lá estavam os dois, satisfeitos, indo tomar sol no playground.
“Se não levo, ela se revolta e derruba todos os porta-retratos.”
Eram retratos com a falecida. Seu Olavo catava um a um, recompunha as molduras, encaixava as fotos nas placas de vidro. Aproveitava para lembrar os momentos vividos com a esposa.
Eu beijava a Renata, tchau mô, catava a pasta, trancava a porta às nove. No elevador, o velho e a gata. Eu dizia bom dia, Seu Olavo retribuía bom dia. O bicho soltava um miado fino e curto, devia ser bom dia. No trajeto até o play, a gata observava nosso papo e me fuzilava olhares azuis. A pelagem marrom lhe dava um aspecto selvagem.
“Tenha um bom trabalho, e não deixe que te enlouqueçam.”
Seu Olavo, bom sujeito.
Não recordo a época em que sumiram. Eu saía no horário, mas nada. Elevador vazio. Tentei pouco mais cedo, pouco mais tarde. Nenhum sinal do velho. Segundo o porteiro, normal. Gente idosa se enfurna no sofá de tempos em tempos para despistar a rotina. Estranho. A gata precisava do sol.
Um dia beijei Renata, tchau mô, meti a pasta no sovaco, passei a chave. E lá estava, a gata no elevador. Perambulava sozinha pelo assoalho. Às vezes se voltava para mim, como se esperasse uma decisão – você vem ou vai ficar me olhando feito trouxa? Entrei, bom dia. Sim, eu disse bom dia. A gata retrucou o breve miado. E eu, não satisfeito:
“Cadê o Seu Olavo?”
Estúpido, estúpido.
No playground, a gata se arrastou até a mureta. Ficou se lambendo sob o sol. Acionei o porteiro, fui trabalhar. Os putos iam me enlouquecer.
Na manhã seguinte, o relato:
Seu Olavo escorregou no banheiro e lá ficou. O bicho, preso no apê com o morto, liquidou os porta-retratos e fez das fotos picadinho. Ninguém explicou como a gata fugiu e tomou o elevador (precisava do sol). Fui o último a vê-la, havia sumido. Sinal da cruz.
Renata não viu mistério. Gato é safo, se bobear girou a tetra chave. Dei um beijo nela, tchau mô, a pasta, a fechadura, o elevador vazio. Bendito seja.
Mas não é tudo.
Missa de sétimo dia do Seu Olavo. Fora da igreja, um gato cor marrom, olhos azuis, desfilava no muro. Miava suave, um boa noite? Tive a sensação de que me reconhecera. Falei com mô, ela disse não seja ridículo, e se apresse que hoje é o último capítulo da novela.
O que é uma novela perto disso?
Numa novela, a gata não estaria no elevador na manhã seguinte. Não teria nos dentes um picote de foto, no qual se percebia o rosto de Seu Olavo. Não exibiria em close a expressão de terror do vizinho do décimo, indeciso entre chamar Renata, “quem é ridículo agora?”, e pegar o elevador para enlouquecer no trabalho. Não mostraria a gata descendo sozinha, escapando quando alguém abrisse a porta. E não teria a cena final, o banho de sol com Seu Olavo – ou com um pedaço da foto dele.
Margô, um belo título de novela. Era o apelido da gata. Homenagem do velho à falecida Margarete.