Por Leozito Coelho

25 de julho de 2009

Salva de palmas

Sabe aquela nesga de imagem na esquina do olho? No meu caso: apanho o controle remoto, desligo a tevê, desgrudo da poltrona, caminho até o interruptor da sala, apago a luz e é neste ponto, exatamente neste ponto em que a claridade se esvai e o negror assoma, no instante em que torço o corpo em direção ao quarto, ao quarto de dormir com Matilde, pois é neste momento, senhoras e senhores, que irrompe a nesga, o flagra lateral, o flash pipocando no canto da vista como uma tela indesejada da internet, e instintivamente eu me retorço em direção à cena e verifico o todo, o conjunto que captara minha atenção: uma luz derrama-se pela fresta inferior da porta de entrada. Luz do prédio, do corredor do prédio. A luz que o sensor aciona. O sensor de presença. Uma presença às duas da manhã.

Hesitei um segundo: dormir ou checar? Então eu fui. Fui no meio do escuro. O tato e a memória ajudando-me a desviar das superfícies da sala. Fui mesmo, fui checar quem estava ali, com sua presença a excitar o sensor, a evocar a luz. Mirei o olho mágico, pronto: havia um sujeito do lado de fora. Um cara! Havia ali, senhoras e senhores, respeitável público, um homem de franja e sobretudo preto, uma figura sombria que me encarava através da lente. O coração palpitava, nem batia de tão acelerado, era medo, confesso, no fundo era medo daquela criatura estática à porta, algo sinistra, mas eu ainda não estava vencido nem esquartejado ou estripado, e me esforcei para, entredentes, sussurrar a pergunta:

"Quem está aí?"

"Quem está aí?", o homem repetiu.

"Fiz uma pergunta", insisti.

"Fiz uma pergunta", o homem novamente.

"Suma daqui ou chamo a polícia."

"Suma daqui ou chamo a polícia."

"Tá de sacanagem, irmão?", eu indignado.

"Tá de sacanagem, irmão?"

"Abro a porta e arrebento essa sua cara!", já muito macho.

"Abro a porta e arrebento essa sua cara!"

A verdade é que não abriria a porta nunca, jamais, pois eu me conheço, sempre tive queda pela covardia, é coisa do sangue, da genética, da linhagem, enfim, uma herança que corre pela família, de frouxo em frouxo, chega a ser um orgulho, mas eu ia fazer o quê?, fazer o quê nessa situação?, atirar-me contra o maníaco?, observem com atenção, senhoras e senhores, estou convicto disso, o homem do lado de fora possuía um semblante homicida, e eu me cago todo com gente assim, gente cruel e má, e por isso não me arriscaria, nunca nunca nunca, mas ia fazer o quê?, eu ia fazer o quê diante daquilo?, ora, estava evidente o que eu ia fazer, eu ia chamar a Matilde com certa urgência.

No caminho até o quarto de domir com Matilde, fui acendendo todas as luzes para dissipar um pouco do pavor.

"Matilde, acorda", eu gritava e chacoalhava os ombros dela, "acorda que tem um louco na porta, um cara esquisito, de franjola, estranho pra burro, pelo amor de Deus, eu tô que me tremo todo, tremendo até na sola, anda logo, levanta Matilde, se o cara arromba, aí é o terror aqui dentro, ei Matilde, você está me escutando ô porra?"

Ela demorou um pouco, mas acordou. Eu suava pelos cotovelos.

A Matilde, senhoras e senhores, é uma mulher paciente, que me escuta mesmo quando não lhe interesso, é uma virtude dela, e eu a considero bastante, então a Matilde ouviu meu relato esbaforido, confuso, trêmulo, o relato de um borra-cuecas, sejamos francos, e ela se pôs de pé, calçou as pantufas, arrastou-se aos bocejos até a porta, curvou-se e mirou a lente. Com muita naturalidade, ela é uma mulher notável, somente as mulheres notáveis primam pela leveza e a soberania do espírito, e como ia dizendo, com naturalidade ela ergueu a cabeça, virou-se para mim e disse: mas é você do outro lado, querido. Eu fiquei mudo, com expressão de candelabro, totalmente absorto e imóvel com a revelação. Matilde voltou ao olho mágico e perguntou:

"Quem está aí?"

"Sou eu, amor", a voz era parecida.

"Voltou cedo", disse Matilde.

"O trânsito estava melhor hoje", a voz era minha.

"Vou abrir pra você", ela girando a chave.

Ouvintes, plateia do balcão, senhoras e senhores, respeitável público, o que descrevo a partir de agora sãs as cenas finais desse episódio, um relato sucinto do que ocorre após Matilde abrir a porta para o homem de franja e sobretudo, um testemunho de quem observa dali, a poucos metros, em meio a seu espanto imobilizador, o desenrolar da história.

Eis os acontecimentos: eu entro, é isso mesmo, não há mais dúvida, o homem sou eu, e portanto eu entro na sala de estar, apanho o controle remoto, ligo a tevê, ajeito-me na poltrona, estico o braço, apago a luz do abajur e é neste ponto, precisamente neste ponto em que retorno ao sofá, de volta à posição de conforto, pois é neste momento, senhoras e senhores, que irrompe a nesga, o flagra, o flash na quina do olho, e instintivamente eu me viro para a cena e verifico o todo, o conjunto que captara minha atenção: uma desconhecida está em um canto da sala, curvada, com pantufas de sapo nos pés, espiando o olho mágico como se procurasse alguém que nunca existiu.

Uma salva de palmas!

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7 comentários:

Anônimo disse...

putz. 10!

Unknown disse...

haha só vc msm!Fiquei tão curiosa de como seria o desfecho!rs
gde abraço!

Anônimo disse...

Não vou comentar.
Não vou estragar um texto desse com um comentário internetal medíocre.
Democracia, interação? Faz-me rir. Escritor não conversa; escritor escreve.

carlota disse...

"Cêlente", adorei, fiquei pensando em vc fazendo uma crônica gigante, de suspense, desses q dão umas 5 páginas e a gente vai lendo, lendo, arregalando os olhos e morrendo de medo de virar a página seguinte. Foi o q senti com esse texto...bom demais: cêlente!!!!!!!!

Unknown disse...

haha,
parece um stand up

abç mm

Rodrigo Lodi disse...

Voltei. E me divertindo muito com teus textos. Grande abraço!!!

Lodi

Sandra Leite disse...

sabe direitinho prender seu leitor heim?;)

Bom te visitar, saudações do CAM!

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