Os pais, essas ilhas de incompreensão... Por que nunca nos entendem? Talvez seja uma herança genética dos primórdios, quando passaram a ficar de pé e a foder uns aos outros com a desculpa egoísta de “perpetuar a espécie”. Se eles se comprazem dessa forma, infestando o planeta de fedelhos, tudo bem, eu respeito. Porém exijo que minha predileção pela dor – aquela provocada geralmente por cortes lancinantes que ferem, sangram, mas não matam – também seja aceita como forma legítima de obtenção do prazer. Quando perfuro a pele com a ponta do compasso, todos os pêlos do corpo se eriçam, inclusive os pubianos, transformando o escroto em um porco-espinho. Também sinto os impulsos sendo conduzidos pelas fibras nervosas até o tálamo, quando finalmente sou informado desta sensação deliciosa, penetrante e única: a dor.
Disponho de giletes, canivetes, cacos de vidro, pregos, tesouras, alicates, abridores, tampas de lata e outros objetos que me auxiliam a cortar a carne, a furá-la, a fustigá-la, a maltratá-la para o meu bel prazer. E justamente quando desenhava uma gaivota no peito com o estilete, registrando tudo no celular para em seguida postar o vídeo no blog Tracejando Fred Mirola, fui surpreendido por aquele senhor que atende pelo nome de ‘pai’. Ao ver-me ensangüentado, adotou a costumeira expressão de espanto, logo substituída por uma perturbação irascível. Então desferiu socos e chutes contra mim, pisoteou-me o rosto como se eu fosse uma aranha ordinária, puxou-me os cabelos, destituiu-me de sua paternidade, enfim descarregou o ódio que sentia por mim e meus hábitos auto-destrutivos.
A sova quase me matou de prazer. Quanto mais ele batia, mais eu sorria. E tudo ia muito bem até ele pegar meus instrumentos de corte e tortura e arremessá-los pela janela. Por acaso eu despojara alguma vez de suas camisinhas? Ou das cartelas de anticoncepcional da 'mãe'? Ou dos brinquedinhos nefastos que utilizavam para gozar, como os pênis de borracha e as línguas postiças filamentosas? A fúria descontrolou minhas idéias. Parti pra cima dele riscando o canivete no ar, tal qual um guerreiro ninja face ao seu oponente. Um esguicho jorrou de seu corpo, pintando-me o rosto de vermelho. Ele evadiu-se confuso e cambaleante. Após trancar o quarto, ouvi um som seco ecoar pela casa.
Aquela que atende por ‘mãe’ conversa com os milicos lá fora. Uma ambulância está estacionada na rua, ao lado de quatro viaturas. Aos poucos o gás entra pela fresta da porta. Estou contente, pois concluí a tempo o upload do vídeo na página Tracejando Fred Mirola. As imagens revelam os primeiros rasgos da gaivota, a surra, o revide, a navalhada, o homem atordoado, a porta que se fecha. Sinto agora um enfraquecimento integral dos músculos, dos fluxos, das vibrações. A vista turva-se aos bocados. O cabo do punhal continua enterrado no peito, como um estandarte do último flagelo. Para o meu desespero, trata-se de uma sensação diferente, associada ao esvair das pulsações. A morte é lenta. Terrivelmente indolor...
Por Leozito Coelho
1 de outubro de 2007
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2 comentários:
Léo,
vc sabe q sou fã dos seus textos, mas este aq está muuuito bom mesmo....dos melhores!
Bjão
Leo,
Esse está maneiríssimo! Tem um quê daqueles seus primeiros contos...
Nota 10, demais!
Abraxxx
Lobo
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