Chalita Lancaster trouxe as quinhentas caixas de papelão na boléia de sua caminhonete, descarregando-as em seguida com a paciência característica dos pobretões que trabalham feito cavalo. Também me ajudou a desdobrá-las, a montá-las e a apinhá-las na sala G do Museu de Arte Moderna, onde a instalação artística Encaixe-se nasceria ao fim da jornada.
A sala G é o único espaço fechado do Museu, com duas portas de acesso e oito metros de pé direito. Seu arranjo favorece a ‘transformação’ que pretendo imputar aos visitantes, uma vez que eles entram por uma das portas, passam a se esfregar nas caixas superpostas no interior do recinto, procuram a saída que os livre daquele amontoado incômodo, e por fim encontram a outra maçaneta e recebem de volta a liberdade já ‘transmutada’. Chalita Lancaster ouviu atentamente à explicação, com o cenho franzido e os olhos esbugalhados, tentando disfarçar sua incompreensão com intervenções estapafúrdias do tipo “que jóia!”, “que barato!” ou “que interessante!”.
Primeiro armamos as caixas com fita adesiva para, em seguida, trazê-las à Sala G. Eu e Chalita Lancaster amontoávamos os caixotes, empilhando-os caoticamente do chão até o teto, quando nossos corpos, acuados pelos cubos de papelão que pairavam sobre nossas cabeças, se tocaram no centro da Sala G. Naquele ínfimo instante pude sentir o calor de sua pele negra, a rigidez do seu bíceps, a concretude dos seus limites físicos, e tais estímulos, somados ao silêncio do recinto e ao roçar ininterrupto das faces de papel em nossas partes, fizeram nascer em mim o desejo de ser atirada sobre as caixas, ser despida com voracidade por aquele ignaro e ser deliciosamente violentada pelo pau fervente de Chalita Lancaster. Após o toque, encaramo-nos por entre blocos de papelão. Pensei em dizer algo, mas as palavras correram temerosas, inclusive as mais banais. Talvez fosse oportuno agarrar-lhe o membro escondido sob o macacão, tirá-lo para fora com um gesto desesperado e a partir daí deixar que ele, Chalita Lancaster, seguisse seus instintos animalescos de macho. Mas o coitado baixou os olhos (eis a resignação dos menos afortunados!) e disse: “Vou buscar as últimas caixas, senhora”.
Do ponto de vista artístico, não seria má idéia que a instalação Encaixe-se fosse concebida em meio à cópula fervorosa da autora com seu fornecedor de matérias-primas. Seria apenas uma transa isolada, sôfrega, oca de objetivos ou pretensões, vazia como as caixas de papelão que entupiam o ambiente. Enquanto eu imaginava posições sexuais sustentadas em cubos, Chalita Lancaster cutucou-me e apontou o indicador (grosso e teso) para as caixas derradeiras, já montadas e estocadas em um canto do saguão que antecedia a sala G. Ajudei-o abrindo a porta, o que agradeceu com um paupérrimo “Valeu, dona”. Chalita Lancaster passou a empurrar cada caixa contra a assombrosa montanha de papelão que inundava o cômodo, exibindo seus tendões, seus suores e seus gemidos a uma espectadora excitada. Por fim, disse sereno: “A senhora veja só... Não é que coube tudo dentro!” A frase arrepiou-me lá embaixo. Seria uma deixa? Um convite para que eu alojasse a rola inteira de Chalita Lancaster no meu canal? Mas convenhamos: ele teria inteligência suficiente para construir tal alusão?
Tomada por questões, agradeci-o pela qualidade do material e pela presteza no empilhamento das caixas. Cheia de segundas intenções, convidei-o a fruir a instalação artística junto a mim. Chalita Lancaster perguntou-me o significado do verbo fruir. “É o ato de experimentar ou vivenciar o abstrato”, respondi. Mas não adiantou muito, pois permaneceu com a interrogação cravada na testa. Ansiosa, desliguei as luzes superiores, laterais e inferiores da Sala G. Eu havia pensado a Encaixe-se em um ambiente escuro, o que favoreceria as sensações táteis e sensoriais do visitante. Evidentemente que o negror do recinto contribuiria, naquele momento, para que eu perdesse minhas vergonhas e me atirasse nos braços de Chalita Lancaster, para que ele me revigorasse a alma com sua vara roxa e pétrea, enfim para que fôssemos ungidos pelo prazer bestial do sexo selvagem. Neste estado de ebulição, abri a porta da sala G para o negro. Ele entrou, e eu atrás.
Vai, alma moribunda, depositar todo desejo em um brutamontes! Quando fechei a porta, Chalita Lancaster disparou rumo à saída feito um trator. Percorreu uma linha reta, espanando violentamente as caixas que o tocavam no percurso. Eu, louca para ser tratada como uma puta, fiquei estancada no meio daqueles cubos vazios, sentindo-me igual a eles. Ao sair, dei com Chalita Lancaster de pé e esbaforido. “A senhora não repare... É que não gosto de escuro.” Pensei em xingá-lo, quem sabe agredi-lo, mas ao invés disso preenchi o cheque com o valor do serviço prestado. Chalita Lancaster agradeceu, subiu na caminhonete e partiu veloz, ciente do dever cumprido.
Por Leozito Coelho
19 de setembro de 2007
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2 comentários:
Uma palavra: Fantástico
Ihhh!Ia usar a palavra da Carlota...fiquei sem comentários...
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