A velhice é aquele estágio de putrefação corpórea, de esgotamento epidérmico, muscular e orgânico, cujo emblema está no ato degradante de peidar involuntariamente sob o lençol, no sofá do vizinho, em frente aos netos, no banco do lotação, enfim, em qualquer situação que se apresente, uma vez que nós, idosos, estamos à mercê de um esfíncter decorativo. Esses constrangimentos sociais de que somos agentes acabam por nos confinar em casa, que é o espaço onde podemos tranquilamente soltar bufas, mijar na tampa, babar à mesa e andar vagarosamente sem sermos achincalhados por garotões malhados ou menininhas tagarelas.
Mesmo no recanto do lar, há desconfortos. Que o diga Getrudes, esposa e companheira das novelas das seis, das sete e das oito, criatura resignada que convive diariamente com minha flatulência mórbida, cada vez mais pútrida e barulhenta, cujos incômodos não se limitam ao fedor e alcançam minhas cuecas frouxas que, uma vez ventiladas pelos gases ‘venenosos’, acabam tingidas por uma cor amarronzada em forma de papel borrado a lápis. Nessas ocasiões, resta-lhe somente um reclame solitário, “valha-me paciência, a casa está que é pura bosta”, para que depois enterre o queixo no peito e atire a cueca adornada de merda no lixo. Gertrudes diz que tenho de usar fraldas, que minhas vestes íntimas estão se esvaindo, mas após dizer isso ela se isola no quarto da tevê, onde resmunga sozinha e reclama da minha falta de coragem em pedir ao filho mais velho, Isaías, que compre fraldas para o pai.
Não fico triste pela minha ingerência sobre o ânus, mas sim por Gertrudes que, me parece, ressente-se com a imundície de que sou capaz de produzir diariamente, mas também se compadece com a minha perda de controle sobre o corpo, o que a faz concluir sobre o pouco tempo de vida de que disponho. Então ela chora trancada no banheiro, contendo os soluços para não chamar atenção. E eu encosto o ouvido na porta, ouço cada fungada, cada suspiro, cada gemido, e volto ao sofá com todo o peso do mundo nas costas.
Foi após uma dessas ocasiões que engoli a ínfima porção de orgulho que me restava e liguei para Isaías pedindo socorro. “Filho, desculpe-me incomodá-lo no serviço, sei de sua ocupação, que anda atribulado, apressado, enfim, que não tem tempo nem pra peidar direito, mas aproveitando o gancho, você sabe, o que mais faço na vida é justamente isso, peidar, peidar muito, seja de dia ou à noite, no quarto ou na cozinha, e o problema é que os flatos não vêm sozinhos, eles são acompanhados geralmente por pinguinhos de merda que borram a cueca, uma coisa terrível, e foi por isso que resolvi te ligar, querido, preciso de sua ajuda para comprar umas fraldas...”
Isaías veio no mesmo dia, na hora do almoço. Trouxe consigo três pacotes de fraldas geriátricas, constituídas de material ultra-absorvente e providas de barreiras laterais anti-vazamento. Eu o abracei com todas as minhas forças, o que não é muito, ou quase nada. Queria demonstrar meu afeto pela generosidade de seu gesto, pela preocupação que tinha com o pai e a mãe, pelo apoio que nos prestava sempre que necessitávamos, e foi neste arroubo de alegria e contentamento que me escapuliu um peido estridente, cuja reverberação fez Isaías afastar-se assustado. “Essa aí já era”, disse Gertrudes, rindo para o filho, “mais uma cueca para o lixo”. Ao menos, seria a última.
Gertrudes está mais serena. As fraldas lhe trouxeram um conforto psicológico acerca do meu bem-estar, da minha higiene e, em última instância, do meu estado de saúde, afastando de sua consciência aquela sensação que certamente sentia ao me ver todo cagado e fedido, aquela sensação de que eu apodreceria em casa, com ela ao lado, até a morte. Fico muito feliz por Gertrudes, embora eu saiba (e ela, no fundo, também) que minha incontinência excretora permanece inalterada, que a ‘máquina da vida’ continua revelando suas avarias a cada peido incontido, a cada odor putrefato que irrompe o recinto, a cada respingo de bosta absorvido por esses tecidos prenhes de tecnologia. Mas nada disso importa. O que vale é estarmos assim, de mãos dadas, assistindo ao capítulo da novela, certos de que permanecemos juntos, unidos, enamorados, a despeito de cada instante que passa.
Por Leozito Coelho
29 de agosto de 2007
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3 comentários:
Leo,
Pode confessar que o final do conto foi escrito para amenizar os peidos que vc solta na frente da Luna....
abrcs
kaukal
O tempo tá corrido e mal tenho tido como escrever pra mim mesma...imagina pra te escrever. Mas vejo que sua mente continua inquieta, cômica, longe do convencional, isso é bom, pra vc! KKKKK, pq aq fora o mundo nos exige posturas tão distantes dessas que é comum morrermos suforcados.
Por isso meu querido amigo, ñ se intimide, mas deixe que a obcessão pela pornografia ñ se limite apenas as crônicas, kkkk, mesmo que "o seu" ñ se pareça com os dos seus personagens. Bom, ñ que eu conheça "o seu" ou tenha ouvido falar "dele", mas como entendo um pouco de psicanálise creio estar certa qt a "isso", kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Bjs
certo, depois da fase pornoerótica (dizem que o novo acordo ortográfico vai abolir o hífen em muitas ocasiões, então já estou tomando a iniciativa, embora na junção de duas vogais, ao que parece, isso não vai vigorar, mas foda-se), começou a fase escatológica. lembrei de um casal de velhinho, ela com 84, ele com 96, sem filhos, que vivem entre gatos, muito felizes, segundo consta. pensei também no meu pai e nas suas fraldas, nos últimos meses, mas o problema, que atingirá os mais sortudos, isto é, aqueles que envelhecerem, é o xixi, mais que os peidos com bosta que parecem ser mais um fantasma juvenil.
abraços.
calbercan
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