Por Leozito Coelho

31 de maio de 2010

A GATA


Chamava-se Margarete. O apelido, Margô.

Seu Olavo descia às nove, o bicho no pescoço. O elevador parava no décimo, eu abria a porta e lá estavam os dois, satisfeitos, indo tomar sol no playground.

“Se não levo, ela se revolta e derruba todos os porta-retratos.”

Eram retratos com a falecida. Seu Olavo catava um a um, recompunha as molduras, encaixava as fotos nas placas de vidro. Aproveitava para lembrar os momentos vividos com a esposa.

Eu beijava a Renata, tchau mô, catava a pasta, trancava a porta às nove. No elevador, o velho e a gata. Eu dizia bom dia, Seu Olavo retribuía bom dia. O bicho soltava um miado fino e curto, devia ser bom dia. No trajeto até o play, a gata observava nosso papo e me fuzilava olhares azuis. A pelagem marrom lhe dava um aspecto selvagem.

“Tenha um bom trabalho, e não deixe que te enlouqueçam.”

Seu Olavo, bom sujeito.

Não recordo a época em que sumiram. Eu saía no horário, mas nada. Elevador vazio. Tentei pouco mais cedo, pouco mais tarde. Nenhum sinal do velho. Segundo o porteiro, normal. Gente idosa se enfurna no sofá de tempos em tempos para despistar a rotina. Estranho. A gata precisava do sol.

Um dia beijei Renata, tchau mô, meti a pasta no sovaco, passei a chave. E lá estava, a gata no elevador. Perambulava sozinha pelo assoalho. Às vezes se voltava para mim, como se esperasse uma decisão – você vem ou vai ficar me olhando feito trouxa? Entrei, bom dia. Sim, eu disse bom dia. A gata retrucou o breve miado. E eu, não satisfeito:

“Cadê o Seu Olavo?”

Estúpido, estúpido.

No playground, a gata se arrastou até a mureta. Ficou se lambendo sob o sol. Acionei o porteiro, fui trabalhar. Os putos iam me enlouquecer.

Na manhã seguinte, o relato:

Seu Olavo escorregou no banheiro e lá ficou. O bicho, preso no apê com o morto, liquidou os porta-retratos e fez das fotos picadinho. Ninguém explicou como a gata fugiu e tomou o elevador (precisava do sol). Fui o último a vê-la, havia sumido. Sinal da cruz.

Renata não viu mistério. Gato é safo, se bobear girou a tetra chave. Dei um beijo nela, tchau mô, a pasta, a fechadura, o elevador vazio. Bendito seja.

Mas não é tudo.

Missa de sétimo dia do Seu Olavo. Fora da igreja, um gato cor marrom, olhos azuis, desfilava no muro. Miava suave, um boa noite? Tive a sensação de que me reconhecera. Falei com mô, ela disse não seja ridículo, e se apresse que hoje é o último capítulo da novela.

O que é uma novela perto disso?

Numa novela, a gata não estaria no elevador na manhã seguinte. Não teria nos dentes um picote de foto, no qual se percebia o rosto de Seu Olavo. Não exibiria em close a expressão de terror do vizinho do décimo, indeciso entre chamar Renata, “quem é ridículo agora?”, e pegar o elevador para enlouquecer no trabalho. Não mostraria a gata descendo sozinha, escapando quando alguém abrisse a porta. E não teria a cena final, o banho de sol com Seu Olavo – ou com um pedaço da foto dele.

Margô, um belo título de novela. Era o apelido da gata. Homenagem do velho à falecida Margarete.



8 comentários:

Robinson Machado disse...

Sensacional, Léo. O que é uma novela perto de uma obra magistral dessas?

Keila Costa disse...

Sabe que sou suspeita quanto a esses felinos maravilhosos...realmente maravilhosos na realidade pra quem os observa como eu de há muito...e que você soube fazer virar escrita com tanta habilidade...beijos

jornalaico disse...

Bom. Gostei.

Beatriz Cândido disse...

Se você escreve um romance(ou uma novela) Gabriel Garcia Marques ( e Dias Gomes)vão gostar!
Beijo. Bia

Unknown disse...

Oiii Leo,

Na verdade não gosto nem um pouquinho de gatos. O pelo deles me causa arrepios!
Mas fiquei com uma peninha da Magô!! :´¬(

Um grande abraço!

Cleila

Carlota Joaquina disse...

Tá demorando demais pra postar hem? Fico aq esperando, esperando aí chega o dia q recebo a tão esperada msg (apesar de esa vez eu só puder abrir hj, suuuper atrasada)...aí fico feliz, leio e abro um mega sorriso...esse texto aq me fez sorrir pq parece aqueles thriller ligth, q vc vai lendo com a certeza de logo algo de assunstador vai acontecer....nem sempre acontece, mas o clima de mistério pemanece, igual seu texto aqui.
Gostei!

Bj

Unknown disse...

Acho que a Margô foi a responsável pela escorregadela mortal do seu Olavo...

Carlota Joaquina disse...

Ou quase um ano sem vc postar aq hem? Já tá na hora não?

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