Por Leozito Coelho

7 de março de 2009

Insegura

Noé é uma cidade em fuga. Antes que a tempestade alague garagens, praças e ruas, que a enchente afogue aposentados, senhoras da elite e ratazanas, que a ventania derrube casinhas, casas e casonas feitas de argila e gravetos, que os relâmpagos fritem as crianças sapecas em correria nos campos, antes que ocorra uma desgraça capaz de arruinar o seu povo, Noé logo se antecipa, se reorganiza e se lança à procura da terra abençoada, onde o sol tranquilizará a todos com seu fervor. Os habitantes nem desfazem as malas, certos de que, em breve, irão zarpar escapulindo dos trovões que se anunciam. Esse nomadismo – para muitos peregrinação – acabou transformando as pessoas que vivem em Noé. Elas privilegiam a vigília das nuvens, desdenhando o traçado de novas alamedas ou o retoque das fachadas ou as migalhas dos pombos. Se um andarilho por acaso cruzasse com Noé no momento da ancoragem e a observasse por instantes, enxergaria naquele emaranhado de antenas, telhas, calhas, janelas, letreiros, becos, esquinas e vielas tão-somente a sala de espera da próxima chuva ou debandada. E anotando em seu caderninho, concluiria: a cidade não foge das calamidades e devastações e mortes que tanto diz temer, mas apenas de si mesma.

3 comentários:

Keila Costa disse...

Lindo texto Leo; repleto de poesia! Lembrou-me 'Modrian', que gosto tanto, de idas sempre vivas, de nomadismo encantador!
Beijos

Unknown disse...

Adorei!!!

Marcos Magalhães disse...

Ok. Agora poderei acompanhar suas mínimas. abrraço,
m

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