Por Leozito Coelho

22 de julho de 2008

Antídoto para a semana*

A menina anuncia a promoção de lavadora nos alto-falantes. Vamos trocar de vez aquela tranqueira?, pergunto em tom brincalhão. Ele costuma praguejar contra a ineficiência do nosso eletrodoméstico e suas dezenas de botoeiras, sua pintura descascada e seus gastos de energia elétrica. Essa joça não limpa nem a barra – ele sempre comenta. Hoje preferiu ignorar minha sugestão e seguir guiando o carrinho de compras. O Moacir tem preguiça de supermercado, daí o mau-humor.

Gosto de organizar os produtos no carrinho. Um ‘paredão’ de embalagens de papel higiênico separa os materiais de limpeza dos itens alimentares. Moacir acompanha tudo e dispara: quanta frescura, viu. Agora sou eu quem finge não escutar. Continuo apanhando as mercadorias nas prateleiras, ajeitando-as como bibelôs. Ele vem atrás, suspira o tempo inteiro. E me aflige.

Sinceramente? O Moacir tem preguiça de supermercado e de mim. Ele não sorri faz tempo nem conversa direito, mas se relaciona muito bem com a tevê e o Lázaro. Fosse por ele, já teria me despejado da cama e acomodado o cãozinho no lugar. O Lázaro é o único a receber seus elogios, carícias e beijos. A tevê, a única a receber sua atenção. Eu não me dou por vencida. Ao deitarmos, afago os seus cabelos – na verdade os enrolo com mais vigor. Chega disso, sussurro no ouvido dele, não quero mais esse negócio de você longe de mim. Ele vira de lado, pára de tolice mulher, longe como se a gente tá sempre junto? Antes que eu mergulhe no assunto, ele submerge no sono. Decreta o boa noite, e apaga.

Trágico mesmo é passar no caixa. O resto é sopa. O Moacir estaciona o carrinho e pronto. Dá a missão por cumprida. Escorado no guichê ao lado, ele me observa com indiferença enquanto transponho os produtos para a esteira com a mesma disposição higiênica – limpeza, papel, alimentos. Eu não lhe peço auxílio, pois sei como pensa: qual ajuda pode ser melhor do que pagar a conta? Os que esperam na fila cochicham, minhas bochechas enrubescem. Se ao menos embalasse as mercadorias... Assim que esvazio o carrinho, sigo à outra extremidade do balcão e inicio o ensacamento, sempre obediente àquela lógica, você sabe. E ele lá, bocejando.

As pessoas me olham com certa comiseração. Quando o Moacir finalmente se move, tira a carteira do bolso e saca o cartão, os enfileirados, já impacientes, danam a confabular. É como se confirmassem a previsão: a mulher rala, o marido paga. Chego a ouvir um rapaz dizendo: ainda existe gente assim?

O Moacir retoma a carrinho com naturalidade, esbanjando alívio pelo fim das compras. Ele abre o porta-malas e me espera descarregar as sacolas. No trajeto para casa, insere o disco enquanto solta o comentário usual – a conta está cara, vamos maneirar nas guloseimas. No instante em que a bossa se espalha pelo veículo, e ele passa a cantarolar as letras, sou invadida por essa sensação de angústia e relaxamento, por essa esperança burra que me fará aturá-lo por mais uma semana, até voltarmos ao supermercado e começar tudo outra vez.

Eu disse tudo outra vez.

(*) Conto publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 20 de julho, em suplemento especial de comemoração aos 50 anos da Bossa Nova.

7 comentários:

Anônimo disse...

Leo, parabéns, muito legal. Dá pra captar a angustia dela no ar! Abraços
Redel

Anônimo disse...

Leo, parabéns, muito legal. Dá pra captar a angustia dela no ar! Abraços
Redel

Anônimo disse...

cabana hein?
tà diparabens.

abrass

Anônimo disse...

Show de bola Leo, Parabéns!!!

Grande abraço

Anônimo disse...

Leo, muito bem escrito, inteligente e sensível. Parabéns! Abração.

Anônimo disse...

Acho q tenho um Moacir em casa, kkkkk, ou quase assim!
Bom demais!
bj

marquinhos_bh disse...

Cara eu sou o Moacir .. rsrsrsrs

Parabens Léo .... brilhante como sempre.

Helio Rocha

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